Do Terra Magazine
Marcelo Carneiro da Cunha
De São Paulo
Pois o nosso Brasil é mesmo um lugar surpreendente. Nessa quinta-feira, 2 de julho, o presidente Lula sancionou um projeto de lei que oferece permanência a todos os imigrantes que tenham chegado aqui até o dia 1º de fevereiro desse ano.
Nessa época em que o mundo se fecha, cria muros, expulsa e prende quem busca uma vida melhor através de fronteiras, muitas vezes imaginárias, a gente vai lá e abre o país para quem já está aqui poder ficar sem maiores traumas.
Eu fico muito, mas muito mesmo, contente com a gente. Gostaria que toda a imprensa desse mais destaque, que todos os brasileiros sentissem orgulho do nosso país, por mais que alguns dos leitores dessa coluna possam ter lá os seus desencantos com ele. Mas se é verdade que a gente às vezes erra em cheio, os nossos acertos também enchem os olhos, os meus ao menos, de lágrimas de emoção legítima, nada de inventado, garanto a vocês.
Porque esse é o país de imigração e da mistura, e isso é o que nos salva, sempre salvou. Claro que a gente poderia ter continuado sendo tupi-guarani, na essência. Mas mesmo os tupis e guaranis foram imigrantes, uns milhares de anos antes. E quando os portugueses chegaram, já pensaram o que seria de nós se tivéssemos sido exclusivamente portugueses? Fado como música nacional? Aquela melancolia toda, o tempo inteiro?
Logo vieram os imigrantes menos voluntários do planeta, diretamente da África, mas que nos moldaram definitivamente, e, a seguir, uma seqüência imparável de novas ondas de gentes que vieram, viram, foram digeridos, e nesse processo de digestão se tornaram brasileiros.
Eu tenho um amigo cujos antepassados vieram da Alemanha e foram largados na margem do rio Jacuí pelo capitão do barco, em 1850, por conta de um desentendimento; e que, por terem se mandado pra cá, talvez não tenham experimentado da opulência econômica da Alemanha, mas escaparam das duas guerras mundiais, dos horrores do nazismo e da divisão do país e toda a Guerra Fria.
Eu tenho uma amiga cujo tataravô veio do Vêneto para a serra gaúcha e foi mordido por uma cobra e morreu na subida dos morros, nem chegou a conhecer a terra que tinha recebido do governo imperial. Eu tenho antepassados que vieram de Portugal para cá pelos anos 1600, devem ter se divertido horrores no Pernambuco até algum parente ter achado que o clima frio combinava melhor com os seus ossos e vir morar no Rio Grande do Sul. Eu tenho um amigo 100% alemão-batata que casou com uma bela sino-brasileira cujo pai se mandou de Xangai em 1950, pra escapar do Mao Zedong, e os chineses que vieram com eles inventaram a soja que hoje nos enriquece.
Quando estive em Tóquio, curtia tudo e sentia falta da nossa mistura de cores. Quando estive na Escandinávia foi a mesma coisa, a sensação de que gente é mais gente quando é diversa e não quando quase todo mundo na rua vive em Technicolor.
Quando eu vivi nos Estados Unidos, no tal de caldeirão de raças, o melting pot de que eles tanto se orgulham, cada sujeito era um Italian-American, African-American, Asian-American, Arab-American, Irish-American, com o prefixo claramente sugerindo o que ele fazia da vida e em que parte da cidade vivia.
Uma amiga escritora palestino-americana esteve aqui e me perguntou se eu conhecia escritores árabe-brasileiros. Eu levei um tempão antes de conseguir pensar no Milton Hatoum, no Alberto Mussa, no Raduan Nassar, simplesmente porque eu nunca tinha pensado neles dessa forma.
Eu realmente acho que a gente não tem a menor noção dessas origens, ou que elas se diluem muito rapidamente na medida em que vamos virando mais e mais brasileiros e mais nada.
E acho que essa é a grande promessa brasileira: a de que qualquer um, e eu quero enfatizar - QUALQUER UM - que aqui chegue, se estabeleça e consiga aprender a comer feijoada e beber cerveja e falar em português minimamente compreensível sobre temas diversos como voos de Zeppelin e traseiro de moça, pimba, vira brasileiro. Não existe barreira, não existe limite. Quer ser brasileiro, vai ser brasileiro, e se não quiser, acaba virando igual, por cansaço.
Quando morei em Berlim, dava dor ver os imigrantes turcos, alguns já na segunda geração nascida na Alemanha, e que não tinham nacionalidade alemã. Essa é a grande questão européia. A de que ninguém que não nasceu europeu e de pais e mães europeus e brancos possa, de verdade, completamente, se sentir europeu.
Aqui, a promessa é outra e includente e isso me faz sentir muito, mas muito mesmo, bem.
E agora a nova lei estende essa possibilidades aos mais novos brasileiros em potencial. Aos chineses e coreanos que chegaram recentemente - as garotas que nos atendem nos restaurantes da Liberdades e que mal conseguem dizer Original e Bohemia, quando a gente pergunta pela cerveja. Aos milhares de bolivianos invisíveis no centro da cidade, espeluncados em fabriquetas e que agora vão poder sair às ruas e reclamar o seu ar digno, de todos - a todos eles e quem mais resolveu viver aqui -, o meu, o nosso muito, muito bem-vindo.
Esse país não existiria se não fossem vocês, nós não seriamos o que somos. Espero que mais gente venha, temos espaço de sobra e a tolerância certa pra lidar com as diferenças e a capacidade inata de tratar a todos os que aqui chegam como os mais novos habitantes de um lugar criado para ser o lar de todos, de qualquer um que se sinta feliz simplesmente por poder olhar ao redor, com todas as coisas contra e a favor, e sentir um bem estar indescritível, simplesmente por se sentir, hummm, desculpem a pieguice, brasileiros.
Aproveitem vocês, milhares de leitores dessa coluna, para darem os parabéns e as boas vindas a algum imigrante que vocês conheçam. Lembrem todos de onde vem o que nos torna tão especiais sobre o planeta. Recebam com carinho os nossos mais novos colegas de país, trazidos até nós por essa bela lei, que saiu do mesmo Congresso que apronta tantas besteiras, de tempos em tempos. Recebam os mais novos brasileiros como foram recebidos os que fizeram de todos nós cidadãos desse país tão difícil quanto generoso.
E vamos em frente, mostrar ao mundo o que ele está perdendo por ser tão mal-humorado, tão exclusivista, tão pouco ligado no que há de melhor e diverso nos seres humanos, que são, afinal, eles mesmos. Bem-vindos, muito bem-vindos, aqui sejam, todos vós.
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